QUANDO A CASA PERDE A SUA LUZ
Ter a sua casa própria. Era o sonho do vô Sebastião. Casar também. Quando conheceu dona Severina (Bia), conseguiu a casa e, depois de um bom tempo de namoro, casou. Realizou dois sonhos num cochilo só...
Vô Sebastião era funcionário público. Andava de paletó, torcia pelo Vasco (Rio de Janeiro) e gostava de prosear na Praça João Pessoa, no centro dos três poderes da Paraíba - Palácio do Governo, sede do Judiciário e Assembleia Legislativa. Falava e sorria pouco, mas era um atento observador urbano.
Comportava-se assim em casa, mesmo dando ouvidos à tagarelice de dona Bia. Não tiveram filhos. Ele teve que conviver com o que ela trouxe a tiracolo - o tio Sampaio. Esse torcia pelo Flamengo, era pintor de automóveis, gostava de sinuca e bebia todas - dia sim, dia não.
Vó Bia não se importava com a bebedeira do seu filho. Tinha lá suas crenças e acreditava que as rezas o protegia de coisa pior. Todavia, o vô Sebastião não gostava de vê-lo embriagado e agressivo com ele. O tio Sampaio cismava de desacatá-lo. Quando isso acontecia, era um alvoroço dentro de casa.
Quem padecia com tudo isso era o menino Toinho, filho de Célia, neto de dona Bia e sobrinho de Sampaio. Tinha o vô Sebastião como um pai. Era filho filho único e de pai desconhecido. Sofria bastante com as implicâncias do tio Sampaio dentro de casa. Não suportava sua bebedeira. Até que um dia provou do líquido proibido e gostou!
A influência do tio Sampaio levou o menino Toinho "de Célia" ao alcoolismo em tenra idade - 13 anos. Um problema a mais para vó Bia resolver. A família parecia perder o rumo do próprio destino, mesmo tendo o vô Sebastião como um conselheiro e orientador coerente com seus pontos de vista filosófico-educacionais.
O menino tornou-se adolescente rebelde e preguiçoso. Não gostava de estudar nem de trabalhar. Queria ser jogador de futebol mesmo com pouco talento para tanto. O alcoolismo atrapalhou o sonho. Restava servir ao Exército. Foi dispensado por apresentar-se com aparência de desnutrido.
Com a morte do vô Sebastião, a família - dona Bia, Sampaio e o menino Toinho - passou a nutrir-se de desavenças, desgostos e desentendimentos sem fim. Virou um inferno o ambiente daquela casa! A luz e a serenidade dela provinha do vô Sebastião. Logo ele que não era adepto de nenhuma religião.
Não demorou muito, dona Bia adoeceu, perdeu a fala e entregou-se lentamente à sua silenciosa morte. A casa, agora, estava sob as rédeas de Sampaio. Ele continuava bebendo todas e brigando com a própria sombra. É aí que aparece dona Célia, mãe do menino Toinho. Veio reivindicar o direito à sua parte na metade do imóvel, no caso de divisão de bens entre herdeiros naturais.
Um detalhe interessante: os dois irmãos não se toleram. Parecem Adão e Eva depois da expulsão do Paraíso.
O menino Toinho - agora com 33 anos e bem mais maduro - repete o mesmo destino do vô Sebastião. Conheceu dona Carmem, com 38 anos, divorciada e carregada de filhos (quatro)! Apaixonaram-se e casaram-se depois de um longo namoro. Estão casados há cerca de 43 anos! Tiveram netas e bisnetas. Tornaram-se algemas eternas um do outro.
Voltando para o capítulo da vida de dona Celinha e Sampaio, ele morreu aos 80 anos. Ela permaneceu na casa como única herdeira viva. O menino Toinho a visitava regularmente aos domingos. Uma longa caminhada de mais de 2 km - na ida e na volta. Sentia prazer em vê-la conversando, sorrindo, lembrando das coisas que viveu no passado.
Até que, um dia, ela foi tragada pela doença de Alzheimer. Na ausência do menino Toinho ela não bebia, não comia, não se banhava, não comia. O sono era fragmentado por pesadelos e delírios angustiantes. Acordava no meio da noite sem saber onde estava. Transformou-se num fardo para si mesma.
Antes de dona Celinha completar 83 anos de idade, ela passou a viver com seu menino Toinho e dona Carmem. Foram apenas cinco meses de uma convivência feita de cuidados e atenção. Ela voltou a sorrir, conversar e ter a sua saúde gastrointestinal estabilizada. Graças aos cuidados de dona Carmem.
Até foi comemorado o seu aniversário no mês de agosto (dia 20) de 2020. Poucos dias antes do Natal desse ano, dona Celinha retirou-se do palco da materialidade humana. Dizia estar cansada de viver subjugada pela doença. Morreu serenamente, trocada de roupa, cheirosa, conversando com dona Carmem no quarto da frente.
Sua última morada por aqui é o Parque das Acácias, no bairro José Américo, em João Pessoa. É lá que o seu corpo está sepultado há cerca de quase cinco anos. Deixou uma saudade imensa na alma do seu menino Toinho. Boas lembranças quando ele a visitava na casa onde morava no bairro Vieira Diniz, vizinho ao Distrito Industrial da capital paraibana.
Hoje, com a casa abandonada, sem a luz que provinha do vô Sebastião, resta apenas ao menino Toinho, agora um homem com 75 anos, cheio de sinais, enrugado e de cabelos brancos, evitar o caminho que leva ao seu passado. Esse tempo passou no calendário, mas ainda vibra intensamente na sua alma.
A casa velha e abandonada é o registro vivo de uma família que experimentou todos sentimentos possíveis em meio a convivências conturbadas. Tudo muito natural se avaliadas as condições espirituais de cada protagonista dessa história. Ao menino Toinho - filho de Celinha, neto de Bia, sobrinho de Sampaio - restou seguir os bons exemplos éticos do vô Sebastião, seu legado de dignidade e honradez no trato com a família que Deus lhe deu.
Sua benção, vô Sebastião!
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